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Como acabou a escravidão brasileira


Por Joel Rufino dos Santos

Fonte: A Escravidão no Brasil, Joel Rufino dos Santos, Editora Melhoramentos, PP 56 à 60


Joel Rufino dos Santos, nascido no Rio de Janeiro em 1941, é escritor e historiador, com doutorado em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, instituição na qual lecionou literatura brasileira por vinte anos. É autor de dezenas de livros de literatura infantojuvenil, de vários romances (entre eles Crônica de indomáveis delírios , de 1991, Bichos da Terra tão pequenos , de 2010, e Claros sussurros de celestes ventos , de 2012) e de vinte e seis títulos de não ficção, entre ensaios de literatura e livros didáticos de história. Dentre suas obras na área da historiografia destacam-se História Nova do Brasil (1963, em coautoria), obra que rendeu ao autor prisão e exílio durante a ditadura militar, O dia em que o povo ganhou (1972) e a biografia do líder negro Zumbi, publicada em 1985. Também foi roteirista das minisséries de televisão “Zumbi, rei dos Palmares” (TV Educativa), “Abolição” e “República” (TV Globo).

  • No começo de 1887, uma procissão incrível percorreu o centro da cidade de São Paulo. Entre os andores se viam instrumentos de tortura – gargalheiras, grilhões, cangas, relhos, anéis de apertar os dedos (chamados “anjinhos”), palmatórias. Quase nenhum brasileiro atual conhece essas máquinas de dor; naquele tempo, todos as conheciam, seja por terem visto aplicadas, seja por terem aplicado, seja por senti-las na própria carne. À frente da procissão, bem debaixo da imagem do Cristo crucificado, desfilava aos tropeções um rapazinho preto. Mexia os braços e as pernas como um boneco de engonço. Retorcia a cara, falava sozinho. Enlouquecera, talvez. A cidade ficou muito impressionada e a polícia não ousou impedir. A multidão ia atrás, silenciosa. De vez em quando, ouvia-se um som de soluço entre os que aglomeravam as calçadas. Esse espetáculo foi armado por um agitador formidável, Antônio Bento, criador dos caifases. Bento era fazendeiro renegado. Lera na Bíblia (em João, 11:50) a profecia do profeta Caifás: Jesus “deveria morrer pelo povo e, assim, a nação inteira não pereceria”. Cansado e insatisfeito com os métodos legais de luta, Antônio Bento fundou uma organização armada para libertar escravos e executar torturadores, os caifases. Pela ação dos caifases nasceu, em Santos, nas terras altas entre o mar e a montanha, o Quilombo do Jabaquara, uma imensa favela de madeira, palha, barro, e telhados de zinco. O celeiro de estivadores e operários do carvão. Aquela procissão-comício, na qual um escravo enlouquecido pela tortura desfilou aos pés do Cristo crucificado, fez crescer a organização de Antônio Bento. Estudantes de Direito do Largo São Francisco, jornalistas, advogados, rábulas, operários gráficos, ferroviários, fazendeiros esclarecidos, havia cada vez mais caifases, clandestinos ou não. Todos arriscavam a pele por slogans subversivos como este:

  • “A escravidão é um roubo”. Ou ainda: “O escravo que mata seu senhor, seja em que circunstância for, age em legítima defesa”. Em 1886, Raul Pompeia, da ala mais esquerdista da campanha, escreveu:

  • A humanidade só tem que felicitar-se quando um pensamento de revolta passa pelo cérebro oprimido dos rebanhos operários das fazendas. A ideia da insurreição indica que a natureza humana ainda vive. Todas as violências em prol da liberdade violentamente acabrunhada devem ser saudadas como vindita santa. A maior tristeza dos abolicionistas é que estas violências não sejam frequentes e a conflagração não seja geral. 30

  • A partir do ano daquela procissão, 1887, aumentou a deserção em massa de trabalhadores. Centenas chegavam, diariamente, ao Quilombo do Jabaquara ou a Cubatão, às matas em torno de Jundiaí, do Rio de Janeiro, de Campos, de Juiz de Fora etc. A pé, de trem, em burros, em carroças mal-ajambradas. Como terminaria aquilo? Não se precisava de bola de cristal para perceber que os custos da escravidão ficavam cada vez mais altos e o desgaste político idem. O exército, convocado para a repressão, declarou em manifesto não querer se prestar ao papel de capitão-do-mato – aqueles mercenários que viviam da caça aos escravos fugidios.

  • O trabalho escravo ainda era lucrativo, mas o custo total do sistema – manutenção do escravo mais gastos com segurança, sem falar de sua baixa produtividade percapita e, como dissemos, a subida do preço no mercado internacional – o tornava inviável. Até a véspera da abolição, as oportunidades de um escravo morrer eram muito maiores do que as de conseguir a alforria. Por um tempo ainda se tentou comprar escravos no mercado interno do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, em um comércio que já vivia um prolongado declínio. O café, marchando rapidamente para o oeste paulista, utilizou essa mão de obra até a Abolição quase que por inércia, uma vez que era menos produtivo que o trabalhador livre: o escravo aguentava em média não mais que quinze anos trabalhando em torno de dezesseis horas por dia.

A proclamação da Lei Áurea

  • Deputados e senadores, saídos em esmagadora maioria da classe senhorial, votaram, em tempo recorde, uma lei declaratória, a nº 3.353 de 13 de maio de 1888, que “declara extinta a escravidão no Brasil”. Dizia a lei:

  • A princesa Imperial, Regente em nome de sua Majestade o Imperador o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembleia Geral decretou e Ela sancionou a Lei seguinte:

  • Artigo 1º. É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil.

  • Artigo 2º. Revogam-se as disposições em contrário.

  • Manda, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contém.

  • Uma agitação pública inédita no país precedeu a assinatura da Lei Áurea. O movimento dos caifases não foi único. Por toda parte, com o fim da guerra contra o Paraguai (1864-1870), a escravidão rapidamente se desmoralizou. Nas capitais das províncias, e mesmo em algumas cidades secundárias, jovens, mulheres e operários criavam entidades abolicionistas; caixas de emancipação pressionavam proprietários a libertar seus escravos, ou ajudavam-nos a fugir. Formava-se um movimento que parecia ganhar força como uma incontrolável bola de neve. A velha instituição se desmoralizava. Um filho de escravos, Cruz e Sousa, ainda que de personalidade mística – talvez o traço principal do Simbolismo a que aderiu – apontou num artigo de jornal a cumplicidade da Igreja com a escravidão:

  • Um padre escravocrata... Horror! Um padre, o apóstolo da Igreja, que deveria ser o arrimo dos que sofrem, o sacrário da bondade, o amparo da inocência, o atleta civilizador da cruz, a cornucópia do amor, das bênçãos imaculadas, o reflexo de Cristo... Um padre que comunga, que bate nos peitos, religiosamente, automaticamente, que se confessa, que jejua, que reza o Orate frates , que prega os preceitos evangélicos aos que caem surge et ambula. Um escravocrata de... batina e breviário... horror!

  • [...] Eu escreverei um livro de versos que intitularei: O ABUTRE DE BATINA. Puros alexandrinos, todos iguais, corretos, com os acentos indispensáveis, com aquele tic da sexta – tipo elzevir, papel melado – e ofereço-te, dou-to. Prescindo dos meus direitos de autor e tu o assinas!... Com os diabos, hás de ter influência no teu círculo.

  • Imprimes um milhão de exemplares, vende-os e assim terás loiras para a tua subsistência, porque tu és paupérrimo padre, e necessitas mesmo de dinheiro, porque tens família, muitos afilhados que te pedem a bênção e precisas dar-lhes no dia de teu santo nome um mimo qualquer.

  • Faz isso, mas... não te metas com o abolicionismo; é a ideia que se avigora.

  • A história escolar tradicional dá os méritos exclusivos da Lei Áurea a um punhado de idealistas como Joaquim Nabuco, Ângelo Agostini, José Bonifácio, o Moço, Joaquim Serra, José do Patrocínio, André Rebouças, Luís Carlos de Lacerda, o já falecido Castro Alves... E esquece a luta dos próprios escravos pela sua libertação, as fugas em massa, os levantes localizados com extermínio de senhores e capatazes, sabotagem da produção, incêndios de lavoura e a formação de quilombos no interior ou na periferia das cidades e vilas. Com a reação dos escravos, muitos senhores e autoridades se assustaram: não seria melhor entregar os anéis em vez de perder os dedos? Diversos abolicionistas começavam a falar em uma abolição complementada por uma reforma agrária que distribuísse lotes de terras aos ex-escravos e, com isso, realizasse um largo plano de reorganização do trabalho agrícola. André Rebouças, por exemplo, falava em “democracia rural”. De fato, o sistema escravista brasileiro estava solapado havia pelo menos cinquenta anos. No Amazonas, no Ceará, em Pernambuco, na Bahia, no Rio de Janeiro, no Paraná ou em Santa Catarina, não importava o quadrante, a produtividade do trabalhador escravo era baixa quando comparada à do assalariado ou à do colono; o preço do escravo estava em alta desde a extinção oficial do tráfico (1850); o abolicionismo europeu pressionava a realeza e a diplomacia brasileiras; ser traficante de escravos se tornara uma profissão desonrosa. Os plantadores de café do vale do Paraíba sabiam muito bem que não se deve plantar em fileira nos morros: a água da chuva, escorrendo livre, acaba com o solo. Mas cultivavam dessa forma porque assim podiam impedir a conversa, a soneca, o “corpo mole” atrás das árvores de café. Salve-se a produtividade, dane-se o solo. O café deixou nessa região solos imprestáveis; fazendeiros amargurados, outrora poderosos, reduzidos à aparência do mando, gastando os dias nas boticas, jecas-tatus assistindo a tudo acocorados ou em banquinhos de três paus (um quarto seria desnecessário, dizia Monteiro Lobato...). Cidades mortas. Custava muito impedir a fuga do negro, sem falar na perda do investimento.

  • Sabendo disso, alguns fugiam e, para voltar, negociavam mais comida, menos castigo, menos horas de trabalho, não ser vendido sem mulher e filhos etc. O sistema escravista era pesado, estava em toda parte, mas havia frestas por onde escapar individualmente, sem confrontar o sistema. Caso exemplar é o de Barão, personagem de Os tambores de São Luís , do escritor Josué Montello:

  • O Barão, vergado sobre o seu prato, cortava meticulosamente um novo pedaço de carne. E quando levantou a vista: – Eu tenho um modo muito meu de combater a escravidão. Sempre que posso, papo uma branca, mesmo feia, e deixo um filho na barriga dela. Até uma afilhada de Donana Jansen [rica, famosa e impiedosa senhora de escravos de São Luís] eu papei. Por esse mundo de meu Deus, devo ter feito, com a força do meu birro, mais de duzentos mulatos e mulatas, que andam por aí. Esses mulatos e essas mulatas se cruzaram com brancas e brancos, e os mestiços que daí nasceram são quase brancos como os brancos de olho azul. Já tenho netos de pele clara, que dá gosto de olhar. Muitos deles nem sabem que eu existo. [...] Com o tempo é isso que vai acontecer. No Brasil: os brancos comem as negras, os negros comem as brancas e os filhos dessas benditas trepadas irão desbotando de uma geração para outra. Em menos tempo do que se pensa, está saindo um tipo novo, bem brasileiro, que não é mais preto, nem também é branco, e que vai mandar aqui, como hoje mandam os senhores. E como o preto, toda vez que se mistura com o branco, se esconde na pele desse branco, nossos mestiços vão pensar que são brancos, e com mais esta novidade: sem ter ódio dos negros, e até gostando deles. Um belo dia, vai-se ver, não há mais branco para mandar em preto, nem preto para ser mandado, e aí acabou o cativeiro. E acabou mesmo, Damião. Estou errado? Não: estou certo, certíssimo. Não é a carta de alforria que dá liberdade ao preto. Vê teu caso. Tu tens a tua e pensas que és livre. Não, não és. Pensando bem, tua situação é pior que a minha. Vives atrás de trabalho, e é com esforço que arranjas um bico, assim mesmo por muito favor. Onde é que está a tua liberdade? [...] Eu, como escravo, tenho as minhas artes, dentro de casa, para viver em paz, e a meu gosto. Nunca amarrei a cara para o meu senhor, mesmo quando ele faz menção de me esbordoar. Nessas horas, desarmo ele: “Que é isso, meu sinhozinho? Não gaste seu braço de branco, tão fino, tão macio, no lombo deste preto seu amigo. Não se zangue por tão pouco. A zanga faz mal ao corpo. Assim, quando vosmecê me bate, leva também seu castigo”. E a verdade, Seu Damião, é que nunca apanhei. 32 Havia também o senhor acoutador. Este, não tendo comprado o trabalhador, o escondia, de forma ilegal, em seu domínio, dando-lhe, para não ser descoberto, menos castigo. O acoutamento (hoje dizemos acoitamento) sobreviverá até o século XX, beneficiando cangaceiros e foras da lei. Outros escravos sumiam para sempre na confusão urbana, mas isso era difícil para os africanos com marcas tribais no rosto. Ou partiam para brenhas distantes (origem das terras de pretos) remanescentes de quilombos que a atual Constituição (1988) reconhece e manda titular. O quilombo produzia, comerciava, se autogovernava, fazia a guerra. Nas últimas semanas da escravidão, alguns, como aquele do Jabaquara por exemplo, com cerca de dez mil moradores, sitiavam as capitais. Os capitães-do-mato não davam conta e o exército tirou o corpo fora, pois seus chefes se sentiam rebaixados nessa função. Assim, a escravidão acabou. O trabalho escravo por quase quatro séculos produzira civilização (no sentido que dei no capítulo 2 ). A partir de certo ponto, no entanto, tornou-se um estorvo ao desenvolvimento dessa mesma civilização. Mérito, principalmente, dos que se jogaram em poços, morreram quando era para viver, conversaram quando era para trabalhar, “deram às de vila diogo”, como então se dizia, quando era para se sujeitar. 33

  • Quanto às leis abolicionistas – a de 1871, do Ventre Livre; a de 1885, dos Sexagenários; a de 1886, proibindo os açoites (na Marinha durariam até 1910); a de 1888, da Abolição –, todas sempre destacadas nos manuais didáticos, tiveram efeito mesquinho e demorado. A Lei do Ventre Livre, assim que terminou a guerra contra o Paraguai, libertava as crianças negras nascidas a partir daquela data, mas as deixava sob tutela de seus senhores até os vinte e um anos; a dos sexagenários pareceu aos abolicionistas uma piada de mau gosto: em média, um trabalhador da roça tinha sobrevida de dez anos se começasse jovem, sem falar que o velho trabalhador devia servir ao ex-dono por cinco anos a título de indenização. É significativo que essas leis foram vistas por parte do Parlamento como comunistas, negadoras da legítima propriedade. A Lei dos Sexagenários, para ficar neste exemplo, serviu mais aos senhores do que aos escravos, já que em média um trabalhador da roça tinha sobrevida de dez anos, se começasse jovem. Ainda assim, os seus adversários no Parlamento as acusaram de serem leis execráveis. O visconde de Rio Branco, que apresentou o projeto do Ventre Livre, teria “desfraldado no Parlamento a bandeira vermelha da Internacional e da Comuna de Paris”, em uma referência paranoica à Organização Internacional dos comunistas e à revolução de 1870 que tomou a capital francesa, a Comuna de Paris. A Lei dos Sexagenários também foi denunciada no Parlamento de proprietários como comunista.


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