Che Guevara admirava a Mao Tsé-Tung. Em novembro de 1960, ambos os dirigentes revolucionários se reuniram pela primeira vez em Pequim. A revolução cubana estava a ponto de completar o segundo aniversário da tomada do poder. E no ano que estava pra terminar, o enfrentamento com o imperialismo norte-americano se havia radicalizado e o governo revolucionário havia procedido a nacionalização e confisco das empresas e propriedades norte-americanas. A ameaça de uma agressão imperialista parecia iminente. No processo de radicalização da revolução, Cuba havia estabelecido acordos com a URSS e se inclinava ao campo socialista. A seguir, apresentamos a minuta da conversa que tiveram Mao Tsé-Tung e o Che. Se bem que não haja muito de novo em relação com as ideias de ambos ou com a interpretação dos fatos que viveram, tem um importante valor histórico.
Há alguns momentos da conversa que é interessante ressaltar. Um deles tem a ver com a confusão de Che Guevara em relação aos conceitos de burguesia-compradora e burguesia nacional, que Mao trata de corrigir, assinalando corretamente que não se deve confundi-las. Ambos os conceitos foram utilizados pela Internacional Comunista para se referir à burguesia nos países coloniais e dependentes. Na China, para referir-se à burguesia-compradora se utilizou também o termo “burguesia burocrática”, como indicou Mao Zedong em seu artigo de 1947 “A Situação Atual e Nossas Tarefas”. Nessa conversa, por exemplo, Mao reitera que Jiang Jieshi (Chang Kai-shek) era o “comprador” dos ingleses e norte-americanos.
Outro momento digno de destaque na conversa é quando, ao fazer-se referência ao artigo de Che Guevara intitulado “Notas Para o Estudo da Ideologia da Revolução Cubana”, Mao assinala que ele está de acordo com os pontos aí anotados pelo Che. Mas ao continuar o diálogo, Mao traz a exame os três princípios formulados por Che em seu folheto “A Guerra de Guerrilhas”. Se bem que nesse livro se pode observar a influência de Mao sobre Che Guevara, consideramos, porém que não se pode dizer em termos absolutos que Guevara adotara e adaptara as teses militares de Mao à realidade latino-americana.
E particularmente, quanto ao segundo princípio que diz que “nem sempre há que se esperar que se deem todas as condições para a revolução: o foco insurrecional pode cria-las”, não cremos que Mao estivesse de acordo com ele, porque em seus escritos demonstra que observa a teoria leninista das condições objetivas e subjetivas da revolução, do que o segundo princípio do Che se distancia.
Outro aspecto importante a assinalar é a personalização que faz Zhou Enlai quando fala sobre a experiência da Revolução Chinesa. Ele não disse “quando fazíamos a revolução” ou “quando fazíamos a guerra de guerrilhas” e sim “quando o presidente Mao fazia as guerrilhas”. Este tipo de referências, porém, não o fazia somente o “adulador” Zhou Enlai, o faziam todos os dirigentes chineses, na presença de Mao, excluindo-se do protagonismo que também tiveram, independentemente da evolução de suas posições políticas. Isto, já em 1960, indicava o grau exagerado do culto à personalidade de Mao, que alcançaria níveis estratosféricos durante a Revolução Cultural, quando o próprio Lin Biao era o que mais incorria em expressões verdadeiramente aduladoras.”
Hora: 4:20 PM – 6:30 PM, 19 de Novembro de 1960
Lugar: Salão Qingzhen em Zhongnanhai
Participantes: Do lado cubano – Chefe de Delegação e Presidente do Banco de Desenvolvimento Nacional, Ernesto Che Guevara,e outros membros da delegação. Do lado chinês – Zhou Enflai, Li Xiannian, Geng Biao, Shen Jian, Lin Ping
Intérpretes: Cai Tongguo, Liu Xiliang
Escrivão: Zhang Zai
Presidente Mao: Vocês são internacionalistas.
Guevara: Os internacionalistas da América Latina.
Presidente Mao: Os povos da Ásia, os povos da África e todo o campo socialista os apoiam. No ano passado você visitou alguns países asiáticos, [não é verdade?]
Guevara: Alguns países como Índia, Sião [Tailândia], Indonésia, Birmânia, Japão, Paquistão.
Presidente Mao: Com exceção da China, [você] esteve em todos os principais países da Ásia.
Guevara: Por isso estou na China agora.
Presidente Mao: Mao: Bem vindo!
Guevara: Nossa situação interna ainda não se havia estabilizado quando saí de Cuba no ano passado, por essa razão nos conduzimos cautelosamente com o mundo exterior, diferente de agora. [Agora] a situação interna se consolidou e podemos ser mais resolutos.
Presidente Mao: A atual situação internacional é melhor que a do ano passado.
Guevara: A nação inteira está unida, mas a cada dia os imperialistas esperam nos dividir.
Presidente Mao: Fora os operários e camponeses, quem mais se uniu a vocês?
Guevara: Nosso governo representa os operários e camponeses. Nosso país, no entanto, tem uma pequena burguesia que tem uma relação amistosa e coopera conosco.
Presidente Mao: Não [há] burguesia nacional?
Guevara: A burguesia nacional estava basicamente composta por importadores. Seus interesses estavam entrelaçados com os do imperialismo e estavam contra nós. [Por isso] os destruímos econômica e politicamente.
Presidente Mao: Eles eram burguesia compradora. Não [devem] ser considerados como burguesia nacional.
Guevara: Alguns dependiam completamente do imperialismo. O imperialismo lhes dava capital, tecnologia, patentes e mercado. Ainda que vivessem em seu próprio país, seus interesses estavam entrelaçados com o imperialismo; era o caso, por exemplo, dos comerciantes de açúcar.
Presidente Mao: Os empresários do açúcar.
Guevara: Eles mesmos. Agora o negócio do açúcar foi nacionalizado.
Presidente Mao: Vocês basicamente expropriaram todo o capital norte-americano.
Guevara: Não basicamente, completamente. Talvez algum capital tenha escapado [da expropriação]. Mas não é que não o queiramos [expropria-lo].
Presidente Mao: Vocês ofereceram compensação ao expropria-los?
Guevara: Sim [uma companhia açucareira] nos comprava mais de três milhões de toneladas de açúcar [antes da expropriação], [nós] oferecíamos uma compensação entre 5% e 25% [do valor do açúcar comprado]. [As pessoas] não familiarizadas com a situação em Cuba tem dificuldade para entender a ironia incorporada nessa política
Presidente Mao: Segundo a imprensa, vocês devolviam o capital e o lucro sobre 47 “caballerias” por ano, com uma taxa de interesse anual de 1%
Guevara: Só as [companhias] que compravam mais de 3 milhões de toneladas de açúcar eram compensadas. Se não haviam comprado, não havia compensação. Havia dois bancos canadenses, relativamente grandes. Não os nacionalizamos, e isto é consistente com nossas políticas interna e externa.
Presidente Mao: É estrategicamente aceitável tolerar temporariamente a presença de algumas companhias imperialistas. Nós também temos algumas [companhias imperialistas] aqui.
Premier [Zhou Enlai]: Por exemplo, como o HSBC [Hong Kong and Shanghai Banking Corporation], cuja presença é quase simbólica.
Guevara: Esses bancos canadenses em Cuba são o mesmo que o HSBC aqui.
Presidente Mao: Vocês [devem] unir aos operários e camponeses, quero dizer, a maioria.
Guevara: Algumas pessoas da burguesia se puseram contra nós e se uniram ao campo inimigo.
Presidente Mao: Aqueles que se puseram contra vocês são seus inimigos. Vocês tem feito um grande trabalho em suprimir esses contrarrevolucionários.
Guevara: Os contrarrevolucionários realizavam atos de agressão. [Por exemplo] algumas vezes, ocupavam algumas ilhas, [nesse caso] os aniquilavamos imediatamente depois. Nada pra se preocupar. [Nós] executávamos ao líder fuzilando-o quando o capturávamos. Seu equipamento vinha dos Estados Unidos e era lançado de paraquedas.
Presidente Mao: Vocês também capturaram vários norte-americanos [não é verdade?]
Guevara: [Eles foram] processados imediatamente e fuzilados.
Premier [Zhou Enlai]: O governo norte-americano protestava e vocês respondiam.
Presidente Mao: Vocês são firmes. Sejam firmes até o final, essa é a esperança [da revolução], e o imperialismo se encontrará em grandes dificuldades. Mas se vacilarem e entrarem em acordos o imperialismo verá que é fácil [lidar com vocês].
Guevara: Na primeira etapa de nossa revolução, Fidel propôs uma forma de resolver o problema da moradia pública, porque o governo tem a responsabilidade de que todos tenham uma moradia. Confiscamos as propriedades dos grandes proprietários de casas e as distribuímos entre o povo. Os pequenos proprietários de casas conservam suas propriedades como antes.
Presidente Mao: E depois?
Guevara: Agora estamos na segunda etapa da revolução, quer dizer, terminar com o fenômeno da exploração do homem pelo homem. Na estreita relação com a situação interna e internacional, estamos trabalhando na consolidação de nosso regime: erradicando o analfabetismo e o desemprego (que está em uma condição particularmente séria), desenvolvendo o setor industrial e aprofundando a reforma agrária.
Presidente Mao: Excelente! Vocês tem influência na América Latina, e até na Ásia e África.
Eles serão influenciados enquanto vocês fizerem bem as coisas.
Guevara: Especialmente a América Latina
Presidente Mao: A pequena burguesia e a burguesia nacional latino-americanas tem medo do socialismo. Por um bom tempo, vocês não deveriam se apressar com as reformas sociais. Este método lhes permitirá ganhar a pequena burguesia e a burguesia nacional da América Latina. Depois da vitória, foram nacionalizados todos os negócios de Jiang Jieshi [Chian Kai-shek] e os negócios que anteriormente pertenciam à Alemanha, Itália e Japão mas que depois passaram a ser patrimônio de Jiang, isso permitiu que o capital propriedade do Estado alcançasse 80% de todo o capital industrial. Ainda que a burguesia nacional tivesse só 20% [de todo o capital industrial], empregava mais de 1 milhão de operários e controlava toda a rede comercial. Nos tomou quase sete anos resolver este problema. [Nós] lhes demos empregos, direito ao voto, administração conjunta público-privada e compra de participações, com a esperança de resolver este problema. Esta solução [conjunta] lhes satisfez e teve um bom efeito relativo no exterior. Depois de ver esta saída, pese que a burguesia asiática não estava completamente, esteve de acordo em que esta era uma forma aceitável de uni-los e que estava bem em utilizar a política de compra de participações. O problema do setor artesanal urbano e a pequena burguesia foi enfrentado, igualmente, por meio das cooperativas.
Guevara: Devemos aprender da experiência de outros países, incluindo China e outros países socialistas. Quanto à burguesia, lhes demos respeito, trabalho e dinheiro, desejando que não abandonassem o país. Também lhes demos salários aos técnicos. Tradicionalmente, não temos indústria artesanal, em consequência, não temos problemas nesse sentido. Temos reunido os desempregados nas cooperativas, as quais em retribuição lhes dão emprego.
Presidente Mao: Estados Unidos não quer que Cuba tenha burguesia nacional. Este é o mesmo caso do Japão na Coréia e do noroeste da China [por exemplo, Manchuria], e no caso da França no Vietnã. Eles não permitem que os locais tenham grandes projetos.
Guevara: Este fato se assemelha a [ao que aconteceu na] América Latina. A fim de destruir as forças feudais, o imperialismo promoveu a burguesia nacional. A burguesia nacional também podia pedir impostos mais altos para a importação. Mas não lutava pelos interesses nacionais; de fato, está coligado ao imperialismo.
Presidente Mao: Tenho uma pergunta. A indústria brasileira do aço está vinculada aos Estados Unidos em termos de capital?
Guevara: As principais fábricas metalúrgicas do Brasil foram estabelecidas com capital norte-americano.
Premier [Zhou Enlai]: Qual é a porcentagem do capital norte-americano? Brasil produz 1.6 milhões de toneladas de aço [anualmente].
Guevara: Não está claro o montante total do capital na maior fábrica do Brasil. Mas tecnologicamente depende completamente dos Estados Unidos. Brasil é um país grande, porém, realmente não existe diferença entre ele e outros países latino-americanos.
Presidente Mao: Tenho outra pergunta. Vocês levaram mais de dois anos desde o desembarque inicial em Cuba até o momento da vitória final. Vocês uniram os camponeses e obtiveram a vitória. Existe alguma possibilidade de que outro país latino-americano possa seguir esse modelo?
Guevara: Não se pode responder a essa pergunta em um só sentido [yigaierlun]. De fato, você tem mais experiência e uma análise mais perspicaz [que nós]. Em minha opinião, Cuba enfrentava mais dificuldades para iniciar uma revolução que outros países latino-americanos. Havia, porém, um só fator favorável: obtivemos a vitória explorando a negligencia dos imperialistas. Os imperialistas não concentraram suas forças ao lidar conosco. Eles creram que Fidel ia lhes pedir empréstimos depois da vitória e que cooperaria com eles. [Pelo contrário], iniciar a revolução em outros países latino-americanos enfrentaria o mesmo perigo que a Guatemala – Estados Unidos interviria enviando marines.[1]
Presidente Mao: Há algumas diferenças [entre esses países latino-americanos] enquanto a situação interna?
Guevara: Politicamente, há [diferenças]. Mas em termos sociais, [todos esses países] caem em duas ou três categorias. Três países tem uma luta armada [em desenvolvimento]: Paraguai, Nicaragua e Guatemala.
Presidente Mao: Agora os Estados Unidos dirigem suas lanzas [duifu] à Guatemala e Nicaragua.
Guevara: Na Colômbia e no Perú, emerge a possibilidade de um grande movimento revolucionário popular.
Presidente Mao: Como foi dito, no Perú, a maioria do povo precisa da terra. Também na Colombia.
Guevara: O caso do Peru é interessante. Sempre houve o costume do comunismo primitivo. Durante seu domínio, os espanhóis trouxeram o feudalismo e a escravidão. Mas o comunismo primitivo não desapareceu por isso. Pelo contrário, sobrevive até hoje. O partido comunista ganhou as eleições em Cuzco. Esta luta [pela vitória comunista nas eleições] está irmanada com a luta racial. No Peru vivem muito índios nativos, mas só os brancos e os mestiços podem possuir a terra e serem proprietários.
Presidente Mao: O povo local tem uma população de 9 milhões a 10 milhões, enquanto que a população espanhola ali é estimada só em dez mil.
Guevara: Essas cifras podem ter sido exageradas. Peru tem 12 milhões de habitantes, dos quais 10 milhões são nativos e dois milhões são brancos.
Presidente Mao: [Peru é] similar à África do Sul. A África do Sul tem só 3 milhões de ingleses.
Premier [Zhou Enlai]: Há 3 milhões de ingleses, 1 milhão de holandeses, 1 milhão de mestiços, 8 milhões de negros e meio milhão de indianos. As pessoas dessas duas últimas categorias vivem nas condições mais miseráveis. Só os brancos têm direito ao voto.
Guevara: Peru no entanto tem escravidão. A terra se vende com as pessoas incluídas.
Premier [Zhou Enlai]: Como o Tibet no passado.
Guevara: Nessas zonas atrasadas, os habitantes não usam dinheiro. Quando se vende, [o vendedo] põe os produtos em um lado da balança e moedas de cobre no outro para medi-los. Não se usa notas ali.
Presidente Mao: A situação na Colômbia é algo diferente, [não é verdade?]
Guevara: Colômbia tem um feudalismo mais fraco, mas tem uma presença católica mais forte. Os proprietários e a Igreja Católica se confabulam com os Estados Unidos. Os índios nativos são pobres, mas não escravos. As forças guerrilheiras costumavam estar presentes na Colômbia, mas agora deixaram de lutar.
Presidente Mao: Cuba tem relações diplomáticas com outros países latino-americanos?
Guevara: Vários países se coligaram e endureceram suas relações com Cuba. Esses países são Haiti, República Dominicana e Guatemala. Colômbia, El Salvador e Honduras, juntos, declararam ao embaixador cubano persona non grata. Brasil retirou seu embaixador, ainda que por outra razão.
Premier [Zhou Enlai]: No total são 7 países.
Presidente Mao: Nesse caso, [Cuba] tem relações com a maioria dois países: 19 [países latinoamericanos] menos 7 é igual a 12.
Guevara: [Cuba] não tem relações com os 3 primeiros [Haiti, República Dominicana e Guatemala].
Nos 4 últimos países [Colômbia, El Salvador, Honduras e Brasil], há chargé d’affaires cubano, mas não embaixador cubano. Para os cubanos, ir ao Brasil, é como ir ao outro lado da Cortina de Ferro.
Presidente Mao: Qual a natureza das guerras na Guatemala e Nicaragua? São guerras populares?
Guevara: Não posso dar uma resposta precisa. Minha impressão é que [a guerra em] Guatemala é [guerra popular] enquanto que [a guerra] em Nicaragua é só de tipo normal. [Elas são] distantes [de Cuba]. Não tenho idéia [da natureza de suas guerras]. [O que disse] é só uma resposta subjetiva.
Presidente Mao: O que acontece na Guatemala está relacionado com [Jacobo] Árbenz [Guzmán]?
Guevara: Só vi a declaramção de Árbenz sobre este tema antes de vir para a China. A revolução [aí] é talvez de caráter popular.
Presidente Mao: Então, Árbenz está em Cuba agora?
Guevara: Sim, está em Cuba.
Presidente Mao: Ele esteve na China e na União Soviética. É uma pessoa agradável.
Guevara: Nós confiamos nele. Cometeu alguns erros no passado, mas é direito, firme e se pode confiar nele.
(O presidente Mao convidou a todos os membros da delegação a uma ceia, durante a qual continuaram conversando)
Guevara: Há duas coisas quase idênticas entre China e Cuba que me impressionaram muitíssimo. Quando vocês estavam fazendo a revolução, o ataque de Jiang Jieshi contra vocês foi [denominado] cerco e aniquilação [weijiao], duas palavras que também foram usadas pelos reacionários em nosso caso. As estratégias [utilizadas por eles] foram as mesmas.
Presidente Mao: Quando corpos estranhos entram no corpo, as células brancas os cercam e aniquilam. Jiang Jieshi nos considerava uma bacteria e queria nos destruir. Nós lutamos contra ele, com intervalos, durante 22 anos, com duas colaborações e duas rupturas as que naturalmente alargaram o prazo. Durante a primeira colaboração, nós incorremos em [o erro de seguir] o oportunismo de direita. Surgiu um grupo direitista no seio do partido. O resultado foi que Jiang Jieshi depurou o partido, se opôs ao comunismo e reprimiu com guerra, isto aconteceu durante a Expedição do Norte. O segundo período, de 1924 a 1927, foi só de guerra. Não nos deixaram saída, igual a Batista que não lhes deixou nenhuma saída. Jiang Jieshi nos ensinou a nós e também ao povo chinês, assim como Batista lhes ensinou a vocês e ao povo cubano: não há outra saída a não ser empunhar as armas e lutar. Nenhum de nós sabia como lutar e tampouco nos preparamos para lutar. O Premier e eu somos intelectuais; ele (referindo-se a Li Xiannian, Vice-Premier) era operário. Mas que outra opção nos sobrava? Ele [Jiang Jieshi] queria acabar conosco.
(O presidente Mao levanta seu copo e propõe um brinde pelo êxito da revolução popular cubana e à saúde de todos os membros da delegação)
Presidente Mao: Uma vez que estalou a guerra, continuou durante os dez anos seguintes. Construímos bases de apoio, mas incorremos no [o erro de seguir] o oportunismo de direita; e quando a política se inclinou excessivamente à esquerda, consequentemente perdemos as bases de apoio, e fomos obrigados a nos retirar, no que foi a Grande Marcha. Estes erros nos ensinaram. Basicamente cometemos dois erros, um de direita e outro de “esquerda”- e aprendemos a lição. Quando o Japão fez a guerra contra a China, cooperamos novamente com Jiang Jieshi, uma experiência que vocês não tiveram.
Guevara: É uma fortuna que não a tivéssemos.
Presidente Mao: Vocês não tiveram a possibilidade de cooperar com Batista.
Guevara: Batista não tinha contradições com os norte-americanos.
Presidente Mao: Jiang Jieshi é o cão de guarda dos ingleses e norte-americanos. Quando o Japão invadiu [a China], Jiang Jieshi não aprovou. No terceiro período, [que durou] 8 anos [1937-45], cooperamos com Jiang Jieshi para lutar contra o Japão. A cooperação não foi boa, [porque] Jiang Jieshi representava a classe capitalista compradora, sendo o intermediário da Inglaterra e Estados Unidos. No quarto período, depois que o Japão fora expulso, Jiang Jisehi nos atacou; passamos um ano nos defendendo [contra ele] e logo contra-atacamos, o que nos custou um total de três anos e meio; em 1949 alcançamos a vitória em todo o país e Jiang Jieshi fugiu pra Taiwan. Vocês não tem uma Ilha Taiwan.
Premier [Zhou Enlai]: Vocês tem a Ilha de Binuo [a Isla de Pinos]. Mas que Batista tivesse a chance de fugir para essa ilha, eles tomaram a Isla de Pinos.
Presidente Mao: Que bom que tomaram.
Guevara: A possibilidade de que os Estados Unidos nos ataquem continuam.
Premier [Zhou Enlai]: Os norte-americanos tentaram atacar a Isla de Pinos.
Presidente Mao: Então, o imperialismo norte-americano é nosso inimigo comum, e também é inimigo comum de todos os povos do mundo. Todos vocês são muito novos.
Guevara: Nós nem éramos nascidos quando vocês começaram a fazer a revolução, exceto ele (apontando ao Comandante Suñol) que já havia nascido. Ele tem 35 anos e é o mais velho de nós.
Presidente Mao: No passado, lutamos na guerra. Hoje [nós] devemos lutar na construção. Defender a revolução.
Guevara: A China também tem outra coisa em comum com Cuba. A avaliação da situação [realizada] no Congresso do PCCh em 1945 diz: algumas pessoas das cidades ignorava o campo; nossa luta se dividiu em duas partes: uma realizava a guerra de guerrilhas nas zonas montanhosas e a outra fazia as greves nas cidades; as pessoas que promoviam as greves menosprezava aos que lutavam na guerra de guerrilhas nas zonas montanhosas. Ao final, fracassaram os que promoviam greves.
Premier [Zhou Enlai]: Muito parecido…
Presidente Mao: Reconfortar-se com o desperdício de forças é aventureirismo. [Enquanto sejam] incapazes de prestar atenção ao campo, não será fácil para as pessoas das cidades se aliarem aos camponeses.
Premier [Zhou Enlai]: Me dei conta depois de ler seu artigo do 5 de outubro (se refere à nota de Guevara, publicada na revista Verde Oliva, sobre o estudo da ideologia revolucionária cubana[2]). Li o resumo desse artigo e os temas que analisava. [Você] pode ser considerado um intelectual.
Guevara: Ainda estou por chegar à etapa de ser um intelectual.
Presidente Mao: [Você] se converteu em autor. Eu, também, tenho lido um resumo de seu artigo, e estou
bastante de acordo com seus pontos. [O artigo] possivelmente pode ter influência na América Latina.
Premier [Zhou Enlai]: Você trouxe o texto completo?
Guevara: Tratarei de encontra-lo.
Presidente Mao: Você propôs três princípios em seus artigos. O povo pode derrotar aos reacionários. Não se tem que esperar que todas as condições estejam maduras para iniciar a revolução. Qual é o terceiro de seus princípios?
Guevara: O terceiro princípio é que na América Latina a tarefa principal se desenvolve nas áreas rurais.
Premier [Zhou Enlai]: É muito importante vincular a revolução com as áreas rurais.
Guevara: Nos atemos muito a esse ponto.
Premier [Zhou Enlai]: Alguns amigos latino-americanos não prestam atenção aos camponeses, enquanto que vocês prestaram muita atenção a esse ponto e triunfaram. A revolução chinesa é igual: muita gente não dava importância à contribuição dos camponeses, enquanto o camarada Mao Zedeong concedeu muita importância a este ponto.
Presidente Mao: O inimigo nos ensinou isso, ao nos permitir existir nas cidades. Ele [Jiang
Jieshi] queria matar pessoas. Que outra coisa podíamos fazer?
Guevara: Fidel [Castro] encontrou um ponto muito importante nas obras do Presidente Mao, algo do que nos demos conta no princípio. Se refere ao tratamento generoso com os prisioneiros de guerra: curar suas feridas e envia-los de volta. Compreendemos esse ponto, que nos ajudou muito [em nossa luta].
Presidente Mao: Essa é a maneira de desintegrar as tropas inimigas.
Premier [Zhou Enlai]: Seu artigo também toca nesse ponto.
Guevara: Esse [ponto] foi agregado depois. Originalmente, aos prisioneiros os levávamos os sapatos e a roupa, porque nossos soldados não tinham [nem sapatos nem roupa]. Mas depois Fidel nos proibiu de fazer isso.
(O presidente Mao levanta seu copo e propõe um brinde à saúde de Fidel.)
Guevara: [As pessoas] não comiam bem enquanto faziam a guerra de guerrilhas. Também estávamos escassos de alimento espiritual. Não podíamos ler materiais.
Premier [Zhou Enlai]: Quando o presidente Mao fazia a guerra de guerrilhas, com frequência enviava as pessoas a conseguir periódicos.
Presidente Mao: Tratar os periódicos como fontes de informação. Os periódicos inimigos com frequência divulgavam os movimentos do inimigo, e eram uma fonte de informação. Nós começamos a revolução com vários milhares de pessoas; [o tamanho das tropas] então subiu a dez mil e logo cresceu até trezentos mil; nesse momento cometemos o erro de “esquerda”. Depois da Grande Marcha, os trezentos mil se reduziram a vinte e cinco mil. O inimigo se sentiu menos temeroso de nós. Quando os japoneses invadiram [China], quisemos cooperar com Jiang Jieshi. Ele disse que podiamos [cooperar com ele], porque dado [que eramos] tão poucos, não nos temia. O objetivo de Jiang Jieshi era que os japoneses nos aniquilassem. Mas não esperava que, depois que lutassemos contra o Japão, cresceríamos de vinte e cinco mil a um milhão e várias centenas de milhares. Quando, depois da rendição dos japoneses, as tropas de Jiang Jieshi de quatro milhões começaram a nos atacar, nós tinhamos um milhão e bases de apoio com uma população de cem milhões. Em três anos e meio, derrotamos a Jiang Jieshi. Essa [guerra nesses anos] não foi mais uma guerra de guerrilhas, foi uma guerra de ampla escala. Como você menciona em seu artigo, aviões, canhões, tanques, tudo isso fracassou em desempenhar algum papel fundamental. Jiang Jieshi tinha tudo, enquanto que nós não tínhamos nada disso. Só mais tarde capturamos alguns canhões.
Premier [Zhou Enlai]: No último período, inclusive, capturamos tanques.
Presidente Mao: O principal [tipo de armamento que capturamos] era de artilharia. Isso nos permitiu criar divisões de artilharia, brigadas de artilharia e regimentos de artilharia. Tudo de equipamento norte-americano.
Premier [Zhou Enlai]: Depois da libertação de Pequim, tivemos uma parada militar. Tudo era equipamento norte-americano. Todavia os norte-americanos não haviam partido. O Consul Geral e o adido militar norte-americanos também assistiram e observaram a parada.
Guevara: No começo da guerra, as pessoas que eu comandava apenas excediam a uma companhia. Uma vez, capturamos um tanque e todos nos alegramos bastante. Mas Fidel quis leva-lo. Eu estava triste, e obedeci só depois de receber bazucas em troca.
Presidente Mao: Ainda que os aviões voem nos céus todos os dias, dificilmente podem provocar baixas. [A gente] pode usar roupa de camuflagem. Se pode usar vestimenta verde pra mudar a aparência. Todos vocês estavam usando uniformes. Todos são soldados.
Guevara: Rodriguez (Vice Ministro de Relações Exteriores) não é soldado. Nessa época ele stava sofrendo no cárcere.
Presidente Mao: Você (dirigindo-se a Rodriguez) parece muito jovem.
Rodriguez: 25 anos.
Presidente Mao: Vocês (dirigindo-se a Mora e Suñol) são soldados.
Guevara: O pai de Mora morreu na guerra. Suñol foi ferido três vezes, em seis partes [do corpo]. Eu fui ferido duas vezes. Rodriguez foi torturado na prisão. No princípio tínhamos poucos homens. Até Fidel lutou com sua própria arma. [Eramos] só doze pessoas.
Presidente Mao: Não eram oitenta e tantas pessoas?
Guevara: O número foi reduzindo gradualmente, ficando no final só doze pessoas.
Presidente Mao: Essas doze pessoas são sementes. A temperatura em vosso país é boa.
Guevara: [Cuba está] a 22 graus ao norte.
Presidente Mao: Suas terras também são boas.
Guevara: Todas as terras são cultiváveis. Se pode plantar árvores de coco nas zonas arenosas. Mas é difícil cultivar nas montanhas.
Presidente Mao: Então [a população de] seu país poderia crescer pelo menos 30 milhões.
Guevara: A Ilha de Java da Indonésia tem em torno de 50 milhões [de pessoas].
Presidente Mao: Vocês deveriam agradecer ao [General Rubén Fulgêncio] Batista [e Zaldívar], da mesma forma que nós agradecemos a Jiang Jieshi. Ele nos deu lições matando pessoas.
Mora [Becerra]: Também estamos agradecidos com Batista porque ele pôs mais gente do nosso lado.
Presidente Mao: Nós temos outro professor: o imperialismo. É nosso ensinador constante. O melhor professor é o imperialismo norte-americano. Vocês também tiveram dois professores:
Batista e o imperialismo norte-americano. [Até onde sei] Batista está agora nos Estados Unidos.
Ele pensa em uma restauração?
Guevara: Os partidários de Batista estão agora divididos em 5 facções, que elegeram cinco candidatos presidenciais. Esses candidatos tem pontos de vista diferentes uns dos outros. Alguns se opõe a Batista, enquanto que outros se comportam mais ou menos como Batista.
Presidente Mao: Eles não são rivais para Batista. Que idade tem Batista?
Guevara: 60 anos.
Presidente Mao: Nosso Jiang Jieshi tem agora 74 anos e anela todos os dias para regressar a Pequim.
Mora: Todos esses 5 candidatos foram dirigentes partidários. As pessoas reconhecem seus nomes e eles também anelam todos os dias regressar a Cuba.
Guevara: Eles saíram da América Central, quatro ou cinco dias depois da nossa vitória, e planejavam chegar a Cuba. Disseram que viriam a derrotar Batista sem estar informados de que nós já haviamos alcançado a vitória da revolução.
Presidente Mao: Há muitos países centro-americanos. Em minha opinião a República Dominicana é promissora, porque ali todo o povo está se unindo contra [Rafael Leonidas] Trujillo [Molinna].
Guevara: É difícil dizer. Trujillo é o ditador latino-americano mais velho [changshu] da América Latina. Os norte-americanos estão pensando em desfazer dele.
Presidente Mao: Os norte-americanos não querem Trujillo?
Guevara: Todos estão contra ele. Por isso, tem que ser substituído.
Premier [Zhou Enlai]: Como [o líder sul-vietnamita] Ngo Dinh Diem e [o líder sul-coreano] Syngman Rhee.
Presidente Mao: Ngo Dinh Diem está se queixando ao máximo.
Premier [Zhou Enlai]: A vida de cliente não é fácil.
Presidente Mao: Agora os norte-americanos não querem a Jiang Jeshi. Nós nos estamos começando a gostar dele. Os que são 100 por cento pró-americanos são piores que Jiang Jieshi, que é só 99 por cento pró-americano. Ele, no entanto, quer conservar seus antecedentes.
Premier [Zhou Enlai]: Isso é dialético.
Suñol: Creio que vocês esperam que Jiang Jieshi regresse.
Presidente Mao: Com a condição de que rompa com os EUA, lhe daremos um lugar em nosso governo.
Premier [Zhou Enlai]: No entanto é melhor se trouxer, junto com ele, a Taiwan.
Presidente Mao: Ainda que pareça que ele não esteja interessado em voltar.
Fonte: Arquivo do Ministério de Relações Exteriores da China, N° 202-00098-01, págs. 1-14. Segundo a versão em inglês para Cold War International Historic Project, de Zhang Qian.
Traduzida para o português por Luca Pilares para o
Portal Vermelho à Esquerda. 23/12/2014, Cuiabá-MT, Brasil.
Comentarios