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Klaus Scarmeloto

Algumas linhas sobre a Cuba de Hoje



Escrito por: Luís Eduardo Mergulhão Ruas


Esse breve texto tem como objetivo apresentar um quadro genérico sobre a situação vivida pela ilha nos dia de hoje, partindo das mudanças iniciadas nos anos 90, com o chamado Período Especial nos Tempos de Paz. A pretensão é que, a partir dessas observações, possamos futuramente analisar o novo socialismo cubano e toda a complexidade da transição comunista, tema pouco abordado principalmente após o fim da URSS e agora retomado, ainda que timidamente, com o recente protagonismo chinês.


O socialismo cubano foi uma opção política diante das imensas contradições geradas pela aplicação de um programa nacionalista e democrático, com forte acento social. De clara inspiração marxista, teve como pontos centrais propriedade estatal/social dos principais meios de produção, a economia planificada e a formação de um novo desenho político, o Estado Socialista, ainda que este só tenha definitivamente se formado em meados dos anos setenta, com a primeira constituição após a revolução, estruturando as Assembleias do Poder Popular por toda a ilha.


Em que pese toda a força histórica do chamado modelo soviético, obviamente presente em todas as instâncias da vida do país, o socialismo cubano nunca foi uma cópia estrita, sendo construído a partir de uma leitura diferenciada do marxismo e da transição comunista acentuando a importância do sujeito coletivo capaz de expressar uma consciência revolucionária que ultrapasse os limites do possível, construindo o homem novo a partir do trabalho voluntário e do exemplo a ser dado notadamente pelos dirigentes.


Um socialismo onde foi decisivo o papel do Estado na economia, até mesmo nas atividades de menor complexidade e a questão ideológica teve um aspecto central, porque o objetivo inicial era, através dessa consciência revolucionária, avançar na construção de relações comunistas - sem uso das “as armas meladas do capitalismo” como dizia Guevara- onde a moral e a igualdade fossem primados fundamentais. Na construção do socialismo cubano, portanto, havia severas criticas às permanências do mercado e formas de pensar a transição a partir de valores e categorias oriundas das sociedades capitalistas.

Nem a aplicação de um sistema muito próximo ao soviético nos anos setenta foi capaz de superar essa perspectiva, e essa vertente do socialismo cubano mostrou sua força tanto em meados dos oitenta no Período de Retificación- quando se criticou, baseado nas reflexões de Che, o modelo do muito próximo ao soviético desenvolvido nos anos setenta - mas principalmente com o fim da URSS, tendo início uma etapa denominada Período Especial. Diante de tamanha crise econômica – quando o PIB caiu 34,8 % o e a ilha perdera 85 %,- o que poderia explicar a vitalidade do projeto diante de um contexto tão desfavorável ? A resposta não é simples , mas certamente o socialismo cubano garantiu uma soberania real com base na unidade nacional patriótica, um desenvolvimento econômico que se dera com inclusão social protagônica, construindo portanto uma nova forma de democracia sem nunca menosprezar a importância da formação ideológica, os valores de igualdade, solidariedade e coletivismo.

Só que a sobrevivência e a continuidade do projeto dependiam também da reinserção de Cuba em um contexto de globalização neoliberal devido ao fim do bloco socialista e da URSS, com quem a ilha mantinha estreitas relações em todos os níveis. O governo revolucionário decidiu então, no plano econômico, adotar uma serie de medidas como o maior incentivo aos investimentos estrangeiros, livre circulação do dólar, pequenos negócios privados, em uma série de medidas que dinamizaram o mercado, garantindo o Estado maior autonomia tanto as suas empresas como ao comércio exterior.


Adotando essa perspectiva, se tornou possível a sobrevivência e um gradual crescimento da economia, mesmo diante do aprofundamento do bloqueio om as Leis Torriceli e Helms Burton, proporcionando capacidade ao Estado cubano de continuar garantindo direitos fundamentais a fim de subsidiar parte da alimentação e serviços básicos , reproduzindo assim o consenso em torno do socialismo.


Do ponto de vista ideológico e político, o governo manteve sua clara conduta anti-imperialista e defesa da soberania nacional em duros embates com os EUA e a contra revolução interna que buscavam aumentar sua influência no povo diante das imensas dificuldades cotidianas .


Reformas políticas democratizantes- nos marcos do socialismo ressalto- permitiram a entrada dos cristãos no PCC , que continuava a ser um partido único mas dessa vez da nação cubana. O partido também deixou de presidir as comissões de candidaturas que organizavam os processo eleitorais e , a votação passou a ser direta para a Assembleia Nacional, sendo também criadas outras instâncias de participação e deliberação capazes de fortalecer o protagonismo popular. Todo o processo de embates e de resistência frente ao imperialismo e a contra revolução interna levaram a promulgação, após consulta popular, de um artigo que tornara o socialismo cubano irreversível.


A avaliação de Fidel e do governo revolucionário apontou que as medidas econômicas tomadas obviamente eram um recuo na transição comunista , mas a garantia de manutenção do projeto estaria preservada a partir da esfera política, com o controle do poder de Estado e presença nas organizações da sociedade civil socialista, sendo então preservada e reproduzida a hegemonia proletária e popular de um socialismo que agora passava a conviver com mecanismos de mercado e uma crescente esfera privada.

A continuidade do processo revolucionário, portanto, fazia nascer no seu bojo, a partir dessas medidas econômicas vistas como emergenciais e necessárias para ”salvar a revolução e as conquistas do socialismo” – como foi dito nos IV e V Congressos do PCC em 1991 e 1995- a construção de um outro “modelo” socialista adequado às necessidades da ilha e ao novo contexto histórico. Simultâneos ao êxito evidente da resistência do projeto, eram comuns tanto no cotidiano como nas reuniões do partido e nas organizações populares preocupações sobre algumas diferenças sociais mais acentuadas-ainda que incomparável com os países do continente- e o crescimento de valores ideológicos relacionados ao individualismo e a competição, até então muito localizados, e por isso estranhos a uma sociedade que tanto prezava o coletivismo e a igualdade.


Realmente os estudos mostravam que o índice Gini,- que mede a desigualdade social, quase que dobrara se comparamos as décadas anteriores com o final da década de 90. Eram claras algumas tensões na sociedade em torno da questão do acesso ao dólar através de determinados empregos que nem sempre exigiam maior qualificação com nível de vida melhor que profissionais como professores e médicos – profissões muito valorizadas pela revolução que sobreviviam com o salário pago em peso cubano. Sem contar que o acesso ás remessas estrangeiras também desequilibrava a relação entre trabalho produtivo e condições de vida.


Na verdade as medidas tomadas fomentaram a sociedade se tornou cada vez mais complexa. O mercado, ainda que controlado, configurava novas relações e havia uma maior pressão objetiva para o fortalecimento da propriedade privada dos meios de produção. Se essa forma de propriedade sempre existiu no campo, com o decorrer dos anos noventa passou a ser algo cada vez mais presente na cidade. O trabalho por conta própria e o desenvolvimento de pequenos negócios, portanto, foram alterando a condição das empresas estatais como as únicas empregadoras do país. O panorama urbano se alterava e a estrutura de classes na ilha socialista ganhava um novo aspecto.


Mesmo levando em conta o grande alento dado pelas relações com a Venezuela comandada por Chavez e a revolução bolivariana, havia necessidade de algumas mudanças no socialismo cubano visto que o tímido crescimento da economia de uma ilha bloqueada não conseguia manter a política de subsídios do Estado, sendo também necessário um crescimento da produtividade até para manter a presença do Estado em algumas áreas que não estariam vinculadas ao mercado, consideradas portanto estratégicas para a continuidade da revolução e do socialismo.

Nesse processo passou a se desenvolver uma releitura do papel do Estado na economia e na sociedade , por vezes apontado como paternalista, e uma crítica mais contundente ao chamado “igualitarismo”, ambos assuntos muito caros ao povo cubano, tendo em vista toda a trajetória do socialismo na ilha, e isso teve como culminação com a s discussões em torno dos popularmente chamados "Lineamientos". Amplamente discutido por toda a população, o projeto organizado pelo PCC em 2011, esse documento, como a Conceituação, aprovado no Congresso posterior anos depois, significaram uma organização mais sistemática com maior embasamento teórico da serie de medidas tomadas desde o Período Especial, afinal a realidade objetiva havia se modificado bastante e era preciso dar um novo formato político jurídico e ideológico a esse novo socialismo.


Em brevíssimas palavras, o documento- que foi discutido por todo o povo cubano - ao mesmo tempo que salientava o papel fundamental da propriedade estatal e incentivava a formação das cooperativas não agropecuárias – reconhecidas como formas socialistas – via como necessárias para o desenvolvimento do país e do socialismo outras formas de propriedade. Por um lado, justamente para que os novos negócios escoassem o numero excessivo de empregados pelo Estado, por outro para dinamizar a produção através do investimento privado, sendo também ainda mais facilitado o investimento estrangeiro.

Curioso é que, no bojo da critica ao igualitarismo- que premiava segundo o governo o trabalho pouco produtivo – havia como dissemos a critica ao excesso de subsídios , até sendo colocada a necessidade do fim da libreta. E o povo cubano recusou o fim da libreta, bem como, anos depois, no processo de discussão que construiu uma nova constituição cubana , impediu a retirada de parte do artigo constitucional onde havia a expressão “avanço até a sociedade comunista” como meta do desenvolvimento e social do país.


Seriam esses episódios demonstrações do apego a uma visão de igualdade radical? Ou sobrevivência de mentalidades que deveriam ser mudadas- um Estado paternalista, garantias salariais que gerariam falta de inciativa- porque era preciso maior produtividade e um outra forma de comportamento do Estado, adequado a esse novo socialismo cubano?


A realidade mostrou as dificuldades de aplicação dos lineamientos pelas dificuldades externas – o bloqueio e o endividamento do país-, as dificuldades internas relacionadas a manutenção e lenta mudança de estruturas relacionadas a um modelo anterior que se faziam bem presentes na organização estatal ,além das dificuldades materiais e jurídicas de desenvolvimento dos negócios privados . Em ambos os caso, faltavam , no geral, acesso a novas tecnologias e financiamento bem como ainda não se construíra uma relação efetiva entre as empresas privadas e estatais, tudo isso agravado por um contexto internacional- a crise na Venezuela dentre outras situações - que dificultaram ainda mais o avanço dessa nova etapa.


O aprofundamento do Bloqueio com as duras medidas de Trump , continuadas por Biden, e a Covid levaram a uma crise em Cuba comparada por muitos cubanos a um novo Período Especial. O PIB caiu em torno de 11 %o em 2020 e o Ordenamiento – uma tentativa de mudança monetária com a unificação das duas moedas que circulavam desde o inicio dos anos 90 - não teve o sucesso esperado. A dura inflação e a dificuldade alimentar em meio a continuidade da crise fizeram o governo adotar novas medidas emergenciais, visando dar maior autonomia ao produtor agrícola- hoje boa parte da produção vem de proprietários privados- deu maior autonomia as empresas estatais e efetivou a descentralização das decisões dando maior peso aos governo locais.


Foram também criadas as Mipimes( micro, pequena e medias empresas), onde a cooperativa e as empresas s estatais estão presentes, mas a grande maioria é composta por empresas privadas em atividades manufatureiras, setor de construção, restaurantes , hotéis e no comércio.


Uma nova Lei das Empresas Estatais está sendo discutida, bem como outra mais abrangente envolvendo as Mipimes, capazes de potencializar a produção e a distribuição, e avançar no relacionamento entre o setor privado e estatal . Ao mesmo tempo, Cuba vêm estreitando ainda mais laços com a Rússia e a China visando principalmente a questão do comércio de combustível, a participação da Rota da Seda e novos investimentos capazes de dar a ilha possibilidade de acesso a novas tecnologias.


É urgente, ainda que tenha se construído todo um projeto de desenvolvimento até 2030, que alguns resultados imediatos apareçam principalmente no combate a inflação e a produção de alimentos, por isso o governo já aponta a necessidade de um ajuste macroeconômico e alguns economistas criticam o excesso de investimento na rede hoteleira, apontando a necessidade de maior atenção justamente a agricultura.


Não podemos esquecer que esses enormes desafios se dão diante da contra revolução externa- o acirramento do bloqueio econômico estadunidense e a ala radicalizada dos cubanos de Miami - a contra revolução interna que em julho de 2021 buscou liderar e radicalizar alguns protestos em torno das duras condições de vida.

É possível que, em meio a situação tão complexa, exista possiblidade de derrota da revolução e do socialismo? Ora, a revolução cubana nunca teve um minuto de paz , sempre sendo ameaçada. A transição comunista, e isso aprendemos com a história, também não é algo retilíneo, unilateral, progressiva e fadada ao sucesso.

Em discurso feito na universidade de Havana em 2005, Fidel disse que, havendo reversão do socialismo na ilha isso não se daria em função do imperialismo, mas liderada pelos próprios cubanos. Pouco tempo depois, afirmara que uma das ilusões da geração de revolucionários a que pertencia era a total clareza sobre a construção do socialismo. Raul também mencionara, no mesmo contexto , que o socialismo era uma viagem ao ignorado.

Fica evidente que a atualização do socialismo cubano é um desafio repleto de tensões, havendo perigos e potencialidades. A grosso modo,- sem em nenhum momento deixar de assinalar o bloqueio e a contra revolução comanda pelos EUA - os perigos estão não só nas imensas dificuldades econômicas atuais, mas um novo conjunto de valores e formas de pensar pouco afeitos com a proposta socialista. Sem contar com o fortalecimento de classes sociais relacionadas a esfera privada, que podem realizar pressões no sentido de um menor controle da economia pelo Estado, para ampliar seus lucros e, quem sabe , futuramente construírem um projeto de poder distante do socialismo.


É possível, simultaneamente que se desenvolva , tanto dentro do governo como e do partido, um setor disposto a rever a opção socialista, a ressaltar que, até o momento, ambos permaneçam contundentes na reafirmação do anti-imperialismo e do socialismo, embora apontem a necessidade de sua atualização, os méritos da convivência com de várias formas de propriedades e o mercado tendo papel fundamental, não sendo este mais considerado um recuo no que se refere a continuidade do socialismo.


Por outro, há um clara possiblidade pode ser que a produtividade seja elevada a partir de novos mecanismos de emulação e participação dos trabalhadores nas empresas estatais , a descentralização que promove o poder local e sistemas participativos e mais integrados em nível municipal, melhorando a relação entre produção e distribuição dos alimentos e outros produtos básicos para o cotidiano e , acesso às novas tecnologias.


Nesse processo o setor socialista- estatal e cooperativo- sendo protagonista em termos de eficiência produtiva e comercial vai ajudar muito nessa batalha cultural cotidiana. Nessa etapa do socialismo onde coexistem várias formas de propriedade e lógicas produtivas diferenciadas, o reforço da hegemonia socialista passa pela produtividade, pela cultura e pela política, com a renovação e aprofundamento do Poder Popular nos marcos da democracia socialista. Enfim, a sorte está lançada e quem irá definir todo esse processo, sem dúvida , é a luta de classes .

Os problemas históricos da construção do socialismo no século XX, o sucesso da China e os desafios atuais de Cuba, sem esquecer das questões apresentadas por Fidel e Raul, nos impõe, portanto, a necessidade de uma discussão profunda sobre a transição comunista.



Bibliografia :

BRIGOS. . (org). Cuba Propiedad Social y Construcción Socialista. La Habana. Ediciones del Poder Popular: 2010

Castro, Fidel. (2005). Discurso pronunciado el 17 de noviembre em el 60 aniversario de su ingreso a la Universidad de La Habana. http://www.fidelcastro.cu/es/discursos

CASTRO, Raúl. Discurso pronunciado en el acto por el aniversario 54 del asalto al Cuartel

Moncada, en la ciudad de Camaguey, el dia 26 de Julio de 2007. Disponível em:

http://www.granma.cu/granmad/secciones/raul26/.


Heredia , Fernando. En el horno de los 90. Havana: Ed. Ciencias Sociales, 2005


Rodriguez , José Luis. Cincuenta años de revolución en la economía cubana (1959-2009).

In: Revista Espacio Critico nº13, 2010.



Documentos

Proyecto de Lineamientos de la Política Económica y social. Noviembre de 2010. Disponível: http://www.cubadebate.cu. Acesso em 25/05/2014.

Conceptualización del Modelo Economico Y Social Cubano de desarrolho socilista pdf

VI Congresso do Partido Comunista de Cuba Informacion sobre el resultado del debate de los Lineamientos de la política económica e social del Partido y la Revolución.Mayo de 2011. Disponível em: http://cubadebate.cu. Acesso em 20/05/2011.


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1 Comment


marialcl
Dec 31, 2023

Excelente!!!

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